segunda-feira, 28 de maio de 2012

Algo de novo no reino das Universidades Federais?


Marcelo Badaró Mattos - UFF

São muitas vezes surpreendentes os caminhos que levam a movimentos
coletivos como as greves. Quem poderia prever que depois de sete anos
sem qualquer greve nacional unificada as Instituições Federais de
Ensino Superior viveriam uma nova greve nacional e com tanta força que
recebeu em poucos dias a adesão dos(as) docentes de 44 instituições,
incluindo praticamente todas as que foram criada nesses últimos anos e
a maior parte das grandes federais mais antigas, como a UFRJ, UFF,
UNIRIO e UFRRJ (para ficar no exemplo das do Rio de Janeiro)? Quem
poderia dizer que nas novas instituições e nos novos campi das
antigas, fruto do tão propagandeado processo de expansão formatado
pelas regras do REUNI*, surgiriam os setores docentes e discentes mais
mobilizados para esse enfrentamento? Como imaginar que até naquelas
instituições em que surgiu e implantou-se uma representação docente de
caráter oficialista – o PROIFES –, cujo objetivo evidente é conter as
lutas da categoria, fossem ressurgir movimentos autônomos das(os)
docentes, convocando assembleias, contrariando direções pelegas e
construindo também lá a mobilização (e ao que parece em breve a
greve)? Quem apostaria que nas Instituições Federais de Ensino
Superior, que por certo forneceram muitos votos ao atual governo
federal na expectativa de manutenção da política de expansão e dos
reajustes salariais anuais, tão forte e resoluta fosse a adesão a um
movimento acusado pelo governo e os governistas de ser fruto de uma
mera manipulação política de setores oposicionistas?

A dinâmica dos conflitos sociais nos reserva surpresas, mas não nos
dispensa de compreendê-las. Porque uma greve tão forte emergiu nestes
últimos dias?
Para entendê-lo é necessário reconhecer que a pauta do movimento,
curta e direta, representa de fato uma forte insatisfação. A pauta:
uma reestruturação da carreira docente e a melhoria das condições de
trabalho. Sobre a carreira, a questão é simples: após 25 anos de
aprovação do Plano Único que passou a reger a carreira docente, em
1987, sucessivas políticas salariais para a Universidade depreciaram e
desestruturaram a carreira. O que se reivindica é, basicamente, uma
única linha de vencimento nos contracheques (com a incorporação das
gratificações e o entendimento do percentual de titulação como parte
do vencimento), com 13 níveis, steps (percentuais entre os níveis) de
5%, acesso interno à carreira ao nível de Professor Titular, com
paridade entre ativos e aposentados e isonomia entre professores(as)
da carreira do magistério superior e da carreira de ensino básico,
técnico e tecnológico. O piso para professor 20h no início da carreira
seria de R$ 2.329,35 (um salário mínimo do DIEESE, calculado com base
nas necessidades mínimas de um trabalhador e sua família, conforme
dita a Constituição). O governo acena com uma carreira mais
desequilibrada em termos salariais, com um piso baixíssimo e promoções
atreladas a critérios produtivistas, visando diferenciar um pequeno
contingente melhor remunerado (por projetos e pela atuação em
pós-graduações) e uma imensa maioria de docentes sobrecarregados com a
elevação da carga de trabalho em sala de aulas de graduação. Já quanto
às condições de trabalho, cinco anos após o início do REUNI, as
instituições federais criaram centenas de novos cursos e ampliaram em
dezenas de milhares as suas vagas de ingresso discente. O governo,
entretanto, não garantiu até agora nem mesmo o relativamente (à
ampliação das matrículas) pequeno número de concursos públicos para
docentes com o qual se comprometeu em 2007. As obras de expansão
carecem de verbas para sua complementação, gerando ausência de
laboratórios, bibliotecas e salas de aula nas novas unidades, assim
como superlotação nas antigas. Some-se a isso a enorme deficiência no
campo da assistência estudantil, cada vez mais necessária na medida em
que entre os novos estudantes tendem ingressar contingentes cada vez
maiores de trabalhadores(as) e filhos(as) de trabalhadores(as), sem
condições de arcar com os custos de transporte, moradia, alimentação e
material didático minimamente necessários para a vida universitária.

A greve pode ter colhido a muitos(as) de surpresa, mas está longe de
ser um fenômeno de difícil explicação. Professores e professoras (e
estudantes que aderem ao movimento em muitas universidades) optaram
por esse instrumento de luta porque estão conscientes de sua
necessidade diante da deterioração de sua carreira e das condições de
trabalho. E perceberam que ou freiam agora o desmonte, ou serão
arrastados ao fundo do poço em poucos anos.

Greve?
Tão logo a greve foi anunciada, surgiram de imediato combatentes
antigreve no interior das Universidades. Seus argumentos não são novos
para quem já viveu outros processos grevistas. Vale rebatê-los apenas
para relembrar aspectos do passado recente das lutas em defesa da
Universidade Pública que podem escapar aqueles(as) que a elas se
integraram nos últimos anos.
Greves paralisam só as graduações e prejudicam apenas os estudantes de
graduação? Tal argumento foi usado principalmente a partir dos anos
2000, quando a pressão das agências financiadoras/avaliadoras sobre as
pós-graduações para cumprirem metas produtivistas gerou um núcleo de
docentes que assumiu internamente (ou como membros de comitês das
agências) o papel de feitores da produtividade coletiva, alardeando o
pânico dos prazos e metas ante qualquer rumor de questionamento. As
greves tradicionalmente pararam aulas de graduações e pós e podem
continuar a fazê-lo. Prejudicam os estudantes? Momentaneamente
prejudicam estudantes, professores e técnico-administrativos que as
fazem, é óbvio, mas significam justamente o sacrifício de um
calendário regular de atividades (com os prejuízos materiais e
pessoais que isso pode representar) em nome de um projeto maior de
Universidade Pública. Assim evitamos a cobrança das mensalidades, com
a greve de 1982; garantimos os direitos dos professores precariamente
contratados ao longo da ditadura, com as greves da primeira metade dos
anos 1980; conquistamos a isonomia entre instituições fundacionais e
autárquicas e a carreira docente, com a greve de 1987; descongelamos
as vagas para concursos docentes, com a greve de 2001; barramos ou
derrubamos diversas propostas e práticas desastrosas para o caráter
público e a qualidade do trabalho universitário (projeto GERES;
propostas de “regulamentação” da autonomia; efeitos da reforma do
Estado; carreira de “emprego público”; gratificações produtivistas,
quebras de isonomia e paridade e etc.), e preservamos minimamente os
salários (que ainda assim perderam muito do seu valor de compra ao
longo dos anos). Estivemos longe de fazer greves meramente
corporativistas, pois sempre pautamos a garantia da qualidade do
trabalho de ensino, pesquisa e extensão nas universidades, o que foi
sempre reconhecido pelos(as) estudantes, muitas vezes com greves
conjuntas, como a que já ocorre agora em diversas universidades.
Seriam os(as) estudantes tolos(as), que apoiam algo que lhes prejudica
tanto assim? Ou o discurso que os vitimiza em relação à greve é apenas
uma artimanha de desqualificação do movimento e da consciência
estudantil?

Desqualificar as mobilizações de trabalhadores e de estudantes,
qualificando-as como produto de minorias e forças “estranhas”
(partidos, sindicatos, intenções políticas oposicionistas) ao corpo
social – universitário neste caso –, é aliás uma das estratégias
recorrentes nos argumentos antigreve dos setores conservadores. Um
recurso retórico em tudo congruente com a longa trajetória de
desqualificação da população trabalhadora pelo discurso das classes
dominantes, que no Brasil sempre apontaram as “ideologias alienígenas”
(anarquistas, comunistas, sindicalistas, ou o que seja) como
responsáveis pelas perturbações à ordem, através da “manipulação” de
grupos tomados como “massas de manobra”, enquanto a maioria do “povo”
– “ordeiro e pacífico” (claro!) – assistiu a tudo indiferente, quando
não “bestializado”. Teriam tanta força nas Universidades Federais dois
ou três partidos de oposição de esquerda ao governo, que juntos
somaram cerca de 1% na última eleição, para manipularem segundo seus
interesses políticos dezenas de milhares de docentes? São as(os)
docentes universitárias(os) tão parvos assim? E as(os) estudantes
também? Se o Sindicato Nacional é tão carente de representatividade,
por que reúne um contingente tão significativo de associados em suas
sessões sindicais? Porque assembleias supostamente “ilegítimas” reúnem
cada uma centenas de professores(as), que trocam informações, avaliam
a situação, discutem e se posicionam coletivamente? Por certo que o
questionamento à legitimidade vem sempre acompanhado de tentativas de
profecias auto-realizáveis: “não vou à assembleia porque ela é
ilegítima e tem pouca participação” (e não indo, contribui-se para
fazer menor a participação e assim arguir sua legitimidade). O que vem
muitas vezes acompanhado de uma fala ainda mais autocentrada de
questionamento dos espaços coletivos de deliberação, não por cercearem
a palavra, mas por aprovarem posturas contrárias às do indivíduo que
questiona: “Já fui muito, mas desisti, pois o espaço é
antidemocrático, já que toda vez que falei contra a greve perdi as
votações”.
Há argumentos mais falaciosos, como o de que as greves não geram
resultado algum ou que esvaziam a Universidade dificultando o debate e
a mobilização, ou ainda que docentes recebemseus salários quando fazem
greve. Difícil tomá-los como simples fruto de diferentes visões
políticas, pois falseiam a realidade. A história das greves docentes
está sendo cada vez mais pesquisada e diversos trabalhos acadêmicos já
fizeram o balanço e avaliaram a importância desses movimentos nas
últimas três décadas. Um quadro sintético dos resultados das greves
nas Instituições Federais pode ser consultado
em
http://www.sedufsm.org.br/index.php?secao=greve. As greves sempre
potencializaram o debate – interno às Universidade e público – sobre
as políticas para o ensino superior no país e parar a atividade
universitária é o único meio de garantir mobilizações multitudinárias
nas ruas. Que debate sobre o ensino superior estão fazendo os
antigreve em suas aulas cotidianas? De que mobilizações em defesa da
Universidade Pública estão participando enquanto dão suas aulas? Já
quanto aos salários, não seria absurdo que o direito de greve fosse
respeitado e os salários pagos, mas todos(as) se lembram de como em
diversas greves que ultrapassaram um mês de duração os salários foram
cortados (cuidado! O governo corta os salários de todo mundo,
inclusive dos(as) que continuam dando aulas!), como na greve de 2001,
em que dois meses foram sucessivamente cortados e só pagos depois que
as mobilizações da greve arrancaram decisões judiciais favoráveis em
meio a “guerras de liminares”.
Não é difícil entender as motivações dos(as) que se propõem a furar
uma greve (fura-greves pode ser um “conceito nativo” com conotação
negativa, como pelego, mas é compartilhado por todos os estudiosos dos
fenômenos grevistas nas Ciências Humanas e Sociais, porque corresponde
ao que expressa). Em alguns casos, acomodam-se a – e reproduzem –
determinadas situações de poder; em outros estão por demais enredados
em mecanismos de apropriação privada de recursos através da
Universidade Pública (como cursos pagos e consultorias); algumas vezes
apenas estão aferrados a defesa do governo de “seu” partido. Outras
vezes, um pouco de tudo isso está presente.

Fazer a greve
As respostas mais significativas aos antigreve sempre foram
construídas pelos próprios movimentos e seus resultados objetivos. Não
se trata de docentes que não aprenderam com as lições do passado, mas
de deliberada retomada de argumentos desgastados para marcar posição e
construir a rede de reverberação interna às arengas conservadoras
tradicionais dos governos e da mídia. No entanto, greves fortes e
participativas, como esta está se desenhando desde o começo, atropelam
sem maiores problemas tais tentativas de deslegitimação da luta
coletiva.

Não há como prever os resultados finais da greve, mas desde já se
podem perceber algumas conquistas significativas. Docentes e
estudantes que ingressaram nos últimos tempos nas Universidades
participam ativamente de um movimento coletivo e sentem-se parte de
uma comunidade universitária que pode sim atuar unida em torno de
pautas comuns. No reino do individualismo, da concorrência e do
produtivismo, ouve-se um coro de vozes falando como uma só, fazendo
ecoar cantos de solidariedade, dignidade, coletividade e consciência
de classe.
Nessa toada – de uma greve apoiada pela maioria da categoria dada a
justiça de suas reivindicações e que ganha do apoio à adesão dos
estudantes pelo aspecto da defesa da Universidade Pública e da
qualidade do ensino – estamos diante da construção de um movimento
suficientemente forte para gerar repercussão pública, apoio social e,
com essas condições, dobrar o governo e garantir ganhos efetivos.
Transformar esse potencial em realidade é o que nos cabe a partir de
agora.

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